terça-feira, 8 de julho de 2008

Na rua: A verdade nua e crua

Este texto foi escrito a propósito do Concurso de Conto e Poesia do Colégio Moderno 2008. O tema era "O Combate à Pobreza". Foi bastante difícil encontrar uma ideia. Confesso que não adorei o texto que escrevi. A minha mãe esboçou um habitual "Gostei muito" (E aliás, para bem do meu ego, espero que ela continue a elogiar a grande parte da minha produção intelectual), já o meu pai preferiu o poema que tinha escrito para o concurso. Ambos arrecadaram o primeiro prémio da categoria Terceiro Ciclo (se bem que há pouco tempo vim a descobrir que o prémio de poesia foi conseguído ex-aequo, o que me deixou extremamente deprimido [estou a brincar]). O texto foi escrito na primeira quinzena de Fevereiro de 2008.

Sábado à noite. Pela madrugada esperam ansiosamente estas ruas, altura em que se apinham de gente em busca de diversão. Estas pessoas mal dão conta que lá habita Horácio, por baixo duma soleira da porta de uma loja de vestuário, enquanto fechada. Nestes Sábados à noite, Horácio apenas deseja que não façam demasiado barulho. Desejo nunca realizado, pois, várias vezes embriagados, os transeuntes fazem Horácio preferir estar na rebaldaria de um mercado, ao Domingo de manhã, do que naquela estreita rua do Bairro Alto, em Lisboa. Mas isso não rala Horácio, já habituado a não ter o que ele desejava e todos têm.

Horácio nasceu há trinta e dois anos, num bairro de lata, no Porto, que, era educadamente chamado de bairro “camarário”. O pai, aquando do nascimento do filho, decidiu lutar para poder dar à criança o mínimo para viver. Pegou em todas as suas poupanças e, com mais um amigo, conseguiu abrir uma loja de ferragens, sem nunca aceitar que a mulher trabalhasse com ele, ficando ela a tomar conta do filho. Dois anos depois, morrem o pai e o sócio, apanhados no meio dum fogo cruzado, entre a polícia e traficantes de droga do bairro. A mãe, assustada, ainda tenta pegar no negócio, mas sem sucesso. A loja faliu em cinco meses. Foge com o filho para o interior do país, onde ficam numa pequena aldeia, na casa dum velho tio. Aos quinze anos de Horácio, que ficou apenas a contar com os ensinamentos do culto tio como escola, morreu sua mãe, com doença grave. Posto isto, o órfão decide lutar pela vida sozinho e dirige-se para a capital. Lá arranjou emprego na construção civil, onde trabalhou até aos vinte e dois anos, quando já havia subido na carreira e dez pessoas dependiam dele. Um dia, um andaime mal montado, mata o seu melhor amigo da altura. A família processa a construtora, que culpou Horácio, por não se ter certificado que o dispositivo estava seguro. A firma é multada e Horácio enjaulado na prisão. Saiu seis anos depois, com ínfimas hipóteses de lhe ser dado emprego. Quem é que dá trabalho a um indivíduo que não tenha habilitações nenhumas, quanto mais mínimas, e, não obstante, culpado por homicídio negligente? Sem ninguém e sem emprego, Horácio habitua-se a viver na rua.

Há quatro anos que o solidário dono daquela loja permite a Horácio dormir, a partir da meia-noite, na soleira da porta de entrada, desde que às oito horas da manhã se retire do local. A partir dessa hora, Horácio vagabundeia pelas ruas do Bairro Alto, indo muitas vezes também à Baixa. Vê muita coisa e ouve histórias de outros sem-abrigo, pois outros não ousariam aproximar-se dele senão, os mais bondosos, para dar uma esmola. Com essa esmola tenta encontrar a loja mais barata, para assim comprar a maior quantidade possível de víveres. Dirige-se várias vezes ao Banco Alimentar contra a Fome para obter um pouco mais de comida. Não sendo guloso, não passa fome. O pior é o frio, ainda que tenha uma ou duas mantas encontradas no lixo, passa com dificuldade as gélidas noites de Inverno. Às pessoas, sobretudo crianças, que apontam para ele, desdenhosamente, Horácio apenas sorri, pois sabe que, quando um dia mais tarde pensarem nisso, sentir-se-ão mal consigo mesmas, mais tarde, ou mais cedo.

Em três parágrafos contou-se a história de um desgraçado, pobre, que ficou sem família. Sem sorte na vida, é assim que se diz dos sem-abrigo que vivem, muitas vezes, nessas soleiras de porta, interior de bancos ou simplesmente, no passeio, a quem toda a gente almeja distância e tenta evitar o olhar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Também gosto!
Cristele

Anónimo disse...

Ninguem mais conseguiria escrever algo tao profundo. Mesmo tocou-me.

ZeGui