domingo, 27 de julho de 2008

Mais que tudo em Londres (Parte 1)

Dez euros em moedas tilintavam na algibeira de Jorge Macieira. Dez euros e não mais de três libras que sobravam da sua recente viagem a Londres, onde conhecera a bela Celine no West Cromwell Hotel, em West Cromwell Road, perto de Earl’s Court. Chegara agora a Caldas da Rainha. O homem que, na camioneta vinda de Lisboa, vinha ao lado de Jorge, ocupava mais do que o seu próprio lugar e Jorge Macieira estava convencido que havia sido o repolhudo homem a roubar-lhe a carteira, deixando-o sem documentos, ficando apenas com os dez euros em moedas e as parcas libras ainda não trocadas.

Encontrou-se com o seu amigo Duarte Fernandes no Café Rosa, na Rainha. Sentaram-se numa mesa que ainda não havia sido limpa, com dois pratos e uma chávena de café por levantar. Veio a empregada e, depois de esta limpar a mesa, infantilmente, Jorge, de trinta e um anos, pediu uma Coca-Cola e um Bolicao.
- Esse bolo, entre aspas, é repugnante, sabes?
- Não, pá, é bom. Então mas eu volto de Londres e tu falas-me do bolo?
- É tudo de plástico, uma coisa nojenta. – dizia Duarte, que havia pedido apenas um café curto.
- Mau! Então pergunta lá, “Como é que foi Londres?”
- Sim, como foi?
- Vou-me casar.
- O quê? Estás a gozar?
- Não, conheci lá uma rapariga.
- E vais-te casar? Estás lá uma semana, conheces mal uma rapariga e vais-te casar?
- Sim, decidimos. E a minha mãe também me andava a chatear…
- Isso é completamente ridículo! A tua mãe não tem nada de interferir nessas coisas e ainda por cima tu vais na conversa dela? – ralhou Duarte.
- Mas eu gosto dela mesmo, ó Duarte. Chiça, mas nem me dás os parabéns? Bem tenho cá um amigo!
- Sim, parabéns, então. Mas pronto, também se é isso que tu queres…
- Sim, contigo é que não queria casar, sabes.
- Lá vem a piada do costume.

***

Celine desceu as escadas estreitas forradas a alcatifa azul para se dirigir à sala onde era servido o pequeno-almoço. Nessa sala apenas estava Jorge Macieira, português permanentemente agarrado ao telemóvel. Celine largou, ao entrar, um “good morning”.
- Bom dia… aliás… good morning. – respondeu, atrapalhado com a beleza da americana, metida dentro de um vestido preto e que realçava as suas curvas. Ela riu-se com a confusão linguística de Jorge Macieira. Quando os dois se levantaram para ir buscar mais sumo de laranja à mesa encostada à parede da minúscula sala de pequenos-almoços, o português meteu conversa com a ianque:
- Então, é de cá? – indagou em inglês.
- Não, sou de DC.
- Washington?
- Sim, Washington DC. O senhor é que não é, pois não?
- Não, sou de Portugal. – esclareceu sorridente.
-Oh, Portugal. Cristiano Ronaldo!
- Tinha de ser. – desabafou em português.
- Desculpe?
- Não, nada. É que sempre que falamos em Portugal, fala-se do Cristiano Ronaldo e do futebol.
- Pois, se calhar. Mas já foi à Tate Modern.
- Não, por acaso, não.
- Nem eu. Tem planos muito definidos para hoje ou gostaria de me acompanhar?
- Não… ah… claro, está pensar em ir a que horas?
- Ia já, por acaso.

Continua...

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Auto-Biografia Escolar 2 - Infantil

Na infantil já era diferente, meus amigos, já era famoso! Continuava a ir com o meu pai, que me vinha buscar à escola, comer castanhas - se estivéssemos na época própria - ou nêsperas. Agora a educadora chamava-se Maria João Paula - extremamente simpática e que ainda me cumprimenta se for o caso de me ver - e a interacção com as demais turmas aumentava. Os gémeos, o David, o Miguel, a Filipa, o Guilherme, a Leonor, a Sofia, o Nuno, o Duarte, a Teresa, o outro gajo que não me lembro do nome, a outra gaja que não me lembro do nome. A minha turma. Quando passámos para a turma dos cinco anos o meu nome mudou. O meu nome mudou, senhores! Chegou à turma um indivíduo da nossa idade que se chamava Manuel, também. Doravante, pouco tempo mais me chamariam Manel. Cardoso. O Cardoso e o Viegas. O Viegas, sim o do escritor. Perdoem-me. Malditos filhos dos escritores! Malditos escritores! Malditos sejam aqueles que alguma vez pegaram num papel, numa máquina de escrever ou num Microsoft Word e começaram a trabalhar num texto! Mas habituei-me a ser o Cardoso. Pensando bem, quanto horror assola este apelido! Manuel Cardoso? Ciclista, já ouvi até ser nome de um assassino. Desculpem lá, pais. Chega desta conversa.

Bendita seja a mesa que a minha avó materna me deu por volta dos meus três anos. Bendita seja também ela, por isso. Grande mesa essa, que tinha o alfabeto. Aprendi então, com a ajuda dessa mesa, a ler. Lembro-me perfeitamente quando lia para os meus colegas e quando, numa brincadeira das minhas predilectas – a reprodução do funcionamento de um restaurante, escrevia “Reservado”, a azul, num papel dobrado ao meio, para colocar em cima das mesas.

Não sei se deva ser intitulado.

Timidamente, entrava eu
Mas sem medo, naquela sala,
Vinha correndo o apogeu
Do amor, "O que não se cala".


Não, não se cala nas cabeças
E prende-nos numa cela
Faz-nos dizer, "Não aborreças!"
Aos outros, no momento que,
Entretidos, pensamos nela.


6 de Junho 2008

terça-feira, 8 de julho de 2008

O metro e eu (em amena cavaqueira)

Poema sobre a minha relação com o metro. (Inclui versos grotescos)

O metro e eu (em amena cavaqueira)

Vou de Alvalade
Saio às dez
Vejo a obra
Que a câmara fez
Em tempos
Em que o eléctrico e o autocarro
Faziam sós trabalho tão bizarro
Fala o Metro
Transportar pessoas?
Mas sou burro de carga?
Vou para o Marquês
E já ninguém me larga!
Falo eu
Saem ali
Na Avenida
O bilhete está caro
Carteiristas com faro
Olha que azar
O bilhete foi ao ar!
Fala o Metro
Não consigo suportar
O barulho
O chiar
Das portas
As minhas portas
Entrem rápido
Que me fecho
Tu não!
Não pagaste bilhete
Falo eu
Porquê?
Pregas ralhete?
Fala o Metro
Não sua louca!
Falo eu
Sou rapaz!
Fala o Metro
Então levas já nessa boca!
Sai daqui
Abusador
Vai a pé
Que não te guardo rancor.

19 de Maio de 2008

Os Solitários

Um poema escrito numa aula de Inglês (espero que as reuniões do Conselho de Turma já tenham ocorrido, a fim de eu, por escrever poemas bacocos ao invés de prestar atenção às aulas, não ser prejudicado.)

Os Solitários

Só Ninguém lhe oferece amizade.
Só.
Todos o marginalizam,
Ostracizam,
É a mesma coisa.

No seu almoço Ninguém o acompanha
Ninguém é bom companheiro
Ele também só procurou Ninguém
E Ninguém teve.

O poeta apercebe-se agora que isto é Odisseia
Homero
E então acabará o poema
Com uma rima, espero.

6 de Maio de 2008

Enquanto há vida há esperança.

Escrever este texto, enviado para um concurso da Verbo, foi aventureiro. Soube da existência do concurso e fui visitar o site onde o mesmo estava descrito. Reparei que a idade limite para a participação no concurso era de 13 anos. Ora eu faria 14 anos no espaço de um mês. O concurso consistia em, a partir de um trecho de uma obra de autores editados pela Verbo (o trecho é exactamente a primeira frase do texto), elaborar uma história. Foi o que fiz em menos de três semanas (não é recorde, mas na altura também havia que estudar e fazer demais coisas). Não ganhei a raça do concurso.


Enquanto há vida há esperança.

Era uma vez uma linda e pobre camponesa que encontrou, próximo de um rio cristalino, um maravilhoso anel mágico.
- Dum vita est, spes est ? – com pronúncia de quem nunca havia lido nada em Latim, pelo menos do que se lembra, Raquel, de onze anos, questionava-se sobre o que acabava de ler nessa inscrição em baixo-relevo, na parte de dentro do anel.
De anéis, a pequena menina loira não percebia nada. Sua mãe mal tinha dinheiro para dar de comer à família, quanto mais para anéis? Na aldeia, apenas a Dona Lídia, mulher do Doutor Cerqueira, dono da pedreira, usava anéis, apetrechados de todo e qualquer material caro e extraordinariamente brilhante que a iluminasse até num dia de nevoeiro cerrado e de nuvens negras. Talvez por isso, Raquel pensara em devolver-lho, se ela reclamasse a pertença do anel. Entretanto, colocara o anel no dedo indicador, para transportá-lo. Dois segundos após essa acção, aparece, vindo inesperadamente do rio, um autocarro verde, do tamanho dos vulgares, do aspecto dos vulgares. De lá saiu uma senhora morena, olhos verdes, elegantíssima, com um vestido azul-escuro, parecia que estava arranjada para ir a um casamento, não iria com certeza vestida para conduzir um autocarro.
- Entra para o autocarro! – ordenou, como quem ordena no sentido que todos conhecemos do verbo. Foi uma ordem, não um pedido.
Raquel, embora estupefacta com todo o ocorrido, indagou o porquê da frieza da mulher:
- Porque é que estás a falar assim comigo? Calminha, se faz favor! Não fui eu que saltei do rio! Ah pois, se eu saltasse dessa forma do rio, já tinha apanhado da minha mãe, se ela tivesse visto!
- Sim, tens imensa graça. – ironizou a motorista – Agora mete-te no carro imediatamente, vou-te levar a um sítio fantástico, por isso não me faças mudar de ideias!
Perante isto, Raquel entra imediatamente no autocarro. Lá dentro, encontra um autocarro vazio.
- Porque é que não vem ninguém comigo? Isto está vazio!
- Isto vai vazio porque só tu podes saber que vieste nesta viagem e visitaste o nosso Universo, que ainda não tem humanos.
- E tu? És o quê?
- Eu sou um ser humano, mas dos poucos que lá há. – respondeu, com pouca paciência.
- Os outros são desumanos? Então não quero!
- Continuas com as tuas piadas… já te calavas, só dois minutos.
Raquel foi-se sentar e contou exactamente os cento e vinte segundos que estava indicada para não falar. Posto isto, continuou com o bombardeamento de perguntas:
- E tu, não pareces nada com os condutores de autocarro donde eu venho! São quase todos homens e se são mulheres são gordas e vestem-se com uns fatos todos feios! Tu não, és bonita e vestes-te bem!
- Obrigada, mas isso é preconceito, nem todas as condutoras de autocarro são feiosas.
- Era muito melhor que fossem todas como tu.
- Enquanto há vida, há esperança. – agora a condutora libertava-se um pouco da frieza que transportava antes.
- Pois é. – concluiu Raquel, a rir.
Passado um pouco Raquel olhou para a janela, ainda não o tinha feito desde o início da viagem, mas também, não tinha perdido nada, apenas via preto, só preto, parecia que a janela estava tapada com uma espécie de cartão dessa cor.
- Não se vê nada!
- Não há nada para ver. Isto é um caminho único, que vai dar ao nosso Universo.
- E falta muito?
- Estamos a chegar.
De facto, cinco minutos depois, o verde autocarro parou numa paragem suspensa no espaço, “parecia coisa de astronautas e isso do cosmos”, haveria de relatar Raquel, mais tarde.
- Salta cá para fora! – ordenou a motorista de olhos verdes. Após isto, Raquel saiu do longo veículo e, tenho quase a certeza, nunca ninguém lhe havia notado semblante tão pasmado senão naquele dia, a observar o que a rodeava.
- Chegámos ao nosso Universo. Ao Universo onde o ódio não existe. O Spes. – declara a condutora
- Spes? Já vi essa palavra em algum lado!
- Já verás onde. Mas agora diz-me, gostas ou não gostas?
- É mágico. É lindo.
- É mesmo mágico.
- Nunca vi nada assim. Nem, provavelmente, voltarei a ver. A ver este Universo maravilhoso, em que as casas, aliás, todos os edifícios são esféricos, esféricos, imagine--se! Toda esta gente maravilhosa, jamais os verei outra vez!
- Queres ir dar uma volta? – indagou a mulher.
- Claro que quero, é redundante perguntar isso! – explica, euforicamente, Raquel – Mas olha! Nunca me disseste o teu nome!
- Cylvy.
- Cylvy? Nome mais estúpido. Decerto que não se percebe nada a ler.
- Raquel Celestina é um espectáculo! – gozou Cylvy.
- Como é que sabes que eu me chamo Raquel Celestina? Para já, nunca te disse o meu nome, segundo, nunca te contaria o meu segundo nome!
- Nós sabemos tudo aqui. Vamos dar uma volta?
- Vamos.
Cylvy e Raquel passeam-se agora pelas ruas de Spes, um Universo bem longe do nosso, mais pequeno, mas, como Cylvy já havia dito, onde não há ódio. Raquel vai reparando em vários factores que justificam essa afirmação:
- Olha ali! Uma gata e um rato a casarem-se? Um lobo e uma ovelha a namorarem? Uma raposa e um galo em união de facto? E o que vejo eu? Um dirigente político e um popular da classe baixa amigos?
- É verdade, tem piada, mas é verdade. Estes dois foram dos poucos humanos que conseguimos trazer. Todos aqui são amigos, todos se dão bem. Aqui, como já disse, não há ódio, rancor, nada dessa espécie. Tudo é perdoável, mas pouco há para perdoar, pois não há pessoas más. A parte maldosa do cérebro humano não existe nos habitantes de Spes.
- E porque é que isso não acontece no nosso Mundo?
- No vosso mundo, que já foi o meu, existem imensas coisas que impedem que o ódio não exista: a concorrência entre os seres, a diferença de classes sociais, o desrespeito… A tua função é trazer as pessoas para este Universo, para que aprendam a não sentir ódio de nada nem de ninguém. Quando souberem bem isso, podem voltar ao seu Mundo, onde terão, assim, uma vida muito melhor para todos, pois canalizarão todos os meios para que o ódio não exista. – disse Cylvy.
- Isso é muito difícil! O Homem quer se sempre sobrepor aos demais!
- Lê a parte de trás do teu anel.
- Dum vita, spes est.
- Enquanto há vida, há esperança. Agora vai para o teu Mundo fazer o que te disse.
Assim, Raquel foi devolvida ao seu Mundo, o planeta Terra, onde teria uma missão.
Raquel acordou e apercebeu-se, sem surpresa, que o sono tinha-se apoderado de si e que tinha entrado na sua imaginação, só que, desta vez, levava uma lição aprendida e uma ideia para proliferar.

O Hamster e a Ratazana

O tal poema que foi ao Concurso do Colégio e ganhou ex-aequo o primeiro lugar (ver Na Rua: A Verdade Nua e Crua)


O Hamster e a Ratazana

Conheci um Hamster
Roedor caseiro
Uma casa fantástica
Nadava em dinheiro
“Maciel, dá-me ração!”
“Maciel, mais requeijão!”
“Maciel, quero caviar!”
“Maciel, preciso apanhar ar!”
Assim vivia
Em eterna alegria
Só faltava o amor
Para a alma compor
Conheceu uma ratazana
Roedora odiável
Vivia no esgoto
Repugnância incontestável
Formosa não era
Rica, tão pouco
Mas duma simpatia atroz
Deixou o Hamster louco
Logo casaram
Crianças criaram
Mantiveram as mãos unidas
Até ao resto das suas vidas
Assim termina
Esta história pequenina
Que prova que o dinheiro e a felicidade
Ficam tão perto quanto Cinfães e Islamabad

Fevereiro 2008

Na rua: A verdade nua e crua

Este texto foi escrito a propósito do Concurso de Conto e Poesia do Colégio Moderno 2008. O tema era "O Combate à Pobreza". Foi bastante difícil encontrar uma ideia. Confesso que não adorei o texto que escrevi. A minha mãe esboçou um habitual "Gostei muito" (E aliás, para bem do meu ego, espero que ela continue a elogiar a grande parte da minha produção intelectual), já o meu pai preferiu o poema que tinha escrito para o concurso. Ambos arrecadaram o primeiro prémio da categoria Terceiro Ciclo (se bem que há pouco tempo vim a descobrir que o prémio de poesia foi conseguído ex-aequo, o que me deixou extremamente deprimido [estou a brincar]). O texto foi escrito na primeira quinzena de Fevereiro de 2008.

Sábado à noite. Pela madrugada esperam ansiosamente estas ruas, altura em que se apinham de gente em busca de diversão. Estas pessoas mal dão conta que lá habita Horácio, por baixo duma soleira da porta de uma loja de vestuário, enquanto fechada. Nestes Sábados à noite, Horácio apenas deseja que não façam demasiado barulho. Desejo nunca realizado, pois, várias vezes embriagados, os transeuntes fazem Horácio preferir estar na rebaldaria de um mercado, ao Domingo de manhã, do que naquela estreita rua do Bairro Alto, em Lisboa. Mas isso não rala Horácio, já habituado a não ter o que ele desejava e todos têm.

Horácio nasceu há trinta e dois anos, num bairro de lata, no Porto, que, era educadamente chamado de bairro “camarário”. O pai, aquando do nascimento do filho, decidiu lutar para poder dar à criança o mínimo para viver. Pegou em todas as suas poupanças e, com mais um amigo, conseguiu abrir uma loja de ferragens, sem nunca aceitar que a mulher trabalhasse com ele, ficando ela a tomar conta do filho. Dois anos depois, morrem o pai e o sócio, apanhados no meio dum fogo cruzado, entre a polícia e traficantes de droga do bairro. A mãe, assustada, ainda tenta pegar no negócio, mas sem sucesso. A loja faliu em cinco meses. Foge com o filho para o interior do país, onde ficam numa pequena aldeia, na casa dum velho tio. Aos quinze anos de Horácio, que ficou apenas a contar com os ensinamentos do culto tio como escola, morreu sua mãe, com doença grave. Posto isto, o órfão decide lutar pela vida sozinho e dirige-se para a capital. Lá arranjou emprego na construção civil, onde trabalhou até aos vinte e dois anos, quando já havia subido na carreira e dez pessoas dependiam dele. Um dia, um andaime mal montado, mata o seu melhor amigo da altura. A família processa a construtora, que culpou Horácio, por não se ter certificado que o dispositivo estava seguro. A firma é multada e Horácio enjaulado na prisão. Saiu seis anos depois, com ínfimas hipóteses de lhe ser dado emprego. Quem é que dá trabalho a um indivíduo que não tenha habilitações nenhumas, quanto mais mínimas, e, não obstante, culpado por homicídio negligente? Sem ninguém e sem emprego, Horácio habitua-se a viver na rua.

Há quatro anos que o solidário dono daquela loja permite a Horácio dormir, a partir da meia-noite, na soleira da porta de entrada, desde que às oito horas da manhã se retire do local. A partir dessa hora, Horácio vagabundeia pelas ruas do Bairro Alto, indo muitas vezes também à Baixa. Vê muita coisa e ouve histórias de outros sem-abrigo, pois outros não ousariam aproximar-se dele senão, os mais bondosos, para dar uma esmola. Com essa esmola tenta encontrar a loja mais barata, para assim comprar a maior quantidade possível de víveres. Dirige-se várias vezes ao Banco Alimentar contra a Fome para obter um pouco mais de comida. Não sendo guloso, não passa fome. O pior é o frio, ainda que tenha uma ou duas mantas encontradas no lixo, passa com dificuldade as gélidas noites de Inverno. Às pessoas, sobretudo crianças, que apontam para ele, desdenhosamente, Horácio apenas sorri, pois sabe que, quando um dia mais tarde pensarem nisso, sentir-se-ão mal consigo mesmas, mais tarde, ou mais cedo.

Em três parágrafos contou-se a história de um desgraçado, pobre, que ficou sem família. Sem sorte na vida, é assim que se diz dos sem-abrigo que vivem, muitas vezes, nessas soleiras de porta, interior de bancos ou simplesmente, no passeio, a quem toda a gente almeja distância e tenta evitar o olhar.

Memórias do Homem Invisível

Elaborada num teste de expressão escrita de Língua Portuguesa deste ano lectivo que acabou, a 12 de Maio, este texto foi classificado com o nível de "Excelente", apesar de ter ultrapassado largamente o limite de vocábulos previamente acordado.

Estou preocupado. A população condena-me por aparecer pouco nas televisões. O meu nome é Isidoro Gouveia e sou ministro. Dos poucos ministros que as pessoas não reconhecem na rua. Ministro da Economia foi a pasta a mim adjudicada há três anos, depois das eleições ganhas por Octávio Ribeiro. Esse sim, um homem carismático! O povo ama-o! Um homem alto, com uns quilos a mais, cabelos grisalhos indicadores dos seus cinquenta e seis anos, olhos azuis, nariz pontiagudo. É um homem sério: popular mas não populista.

A população, como dizia, advoga a tese de que eu, Isidoro Gouveia, não faço nenhum. Logo há três anos, depois das eleições, os mais entendidos em política estranhavam e/ou desconheciam a minha cara. Era gestor de empresas. Não tinha nada a ver com políticas até há três anos. Tinha vivido quase toda a minha vida nos Estados Unidos da América, onde estudei Gestão e Marketing na Universidade de Harvard. E foi quando trabalhava como uma das figuras principais na gestão de uma grande multinacional que Octávio Ribeiro me sequestrou dentro de uma sala de um hotel em Boston para me propor o cargo:
- Dr. Gouveia – dizia ele numa altura em que não tínhamos intimidade -, tem de aceitar vir comigo! Portugal precisa de um economista como o senhor! E é um grande esforço financeiro que o estado faz para o manter!
- Vou pensar – declarei eu, num tom, confesso, arrogante e, sobretudo, mentiroso pois não iria pensar mais sobre essa questão: já tinha decidido aceitar.

Era realmente um grande esforço financeiro que a Administração fazia para me conseguir o meu contributo. Eu sou um homem empreendedor, decidido, e organizado e, com efeito, sem querer ser vaidoso, Portugal precisava e precisa da minha ajuda: com as campanhas feitas no estrangeiro o turismo cresceu; as fontes de energia renováveis foram desenvolvidas economicamente, entre outras “obras”. Sou também introvertido e comunico mal com as pessoas, coisa tão essencial num político. Paciência. Serei sempre o Homem Invisível.

A bruxinha

Uma redacção de um teste de Português do sexto ano. Foi feita em Maio de 2006 e bastante elogiada na altura. O Post Scriptum está bastante grotesco.


A bruxinha depois de ter abandonado as bruxas velhas foi para a Terra, onde foi mal recebida, pois os humanos tinham medo dos seus poderes mágicos. Os Estados Unidos, aquando da sua chegada à Terra tinham mandado cercar a zona onde ela ia chegar com militares armados, mas ela vinha equipada com uma bandeira branca, em sinal de paz e disse que desejava falar com o Chefe Supremo da Comissão de Admissão de Bruxas na Terra e com o Ministro Mundial do Serviço de Bruxas e Fronteiras. Este desejo foi-lhe concedido.

O Ministro Mundial do Serviço de Bruxas e Fronteiras concordou que a pequena bruxa ficasse na Terra, mas o Chefe Supremo da Comissão de Admissão de Bruxas na Terra discordou. Os dois discutiram muito e uma semana depois o Ministro Mundial do Serviço de Bruxas e Fronteiras aparece morto junto ao Central Park, em Nova Iorque.

Mais umas semanas e a nossa heroína viria a ser deportada para o Granparaísodecriaturasodiadaspeloshumanos, um local onde tudo é maravilhoso, mas para onde os humanos enviam todas as criaturas que não gostam: bruxas, lobisomens, fantasmas, etc.

Mas foi lá onde a bruxinha encontrou Ricky, um bruxo, na mesma situação que ela, mas que tinha nascido um ano antes. Ele e a bruxinha apaixonaram-se e foram felizes para sempre.

PS: Não percam o próximo episódio! Quem será que matou o Ministro Mundial do Serviço de Bruxas e Fronteiras? Até lá... Ciao!!!

Isto é Sentido

Isto é Sentido

Isto é sentido
Não é um monte
De frases
Ditas
Profundas.
São profundas, sim
E não ditas!
Apenas ditas serão para quem as diz
Não quem as escreve, como é óbvio.

6 de Junho de 2008

domingo, 15 de junho de 2008

Consideração sobre o histerismo de amor à pátria que roda cada vez que ocorre uma competição de selecções de futebol em que Portugal está incluído

Golo de Portugal,
Vou desfraldar a bandeira
No meu já cheio estendal
Mas que interesseira!
A sociedade portuguesa
Desfralda a bandeira
E o cagaçal
Quando temos a certeza
Que ninguém nos chama "Oh facho cabeça rapada!"
Ou coisa que tal

15-06-2008

Calorzinho

Hoje aquece
Não arrefece
O rio, incompetente
Não ameniza
O mar está longe`
À distância de uma ponte
Ou dum itinerário complementar
A água escasseia
Quero-a na cara
E que alguma vá deslizando
Corpo abaixo.

15-06-2008

sábado, 14 de junho de 2008

Biografia Escolar - O infantário

Muitas birras fiz eu, nos inconscientes dois anos, à porta do infantário. Aquela casa amarela. Lembro-me da casa amarela, guardada por um polícia. Coitado do polícia que aturava as minhas fitas à porta do estabelecimento escolar. E, obviamente, coitada da minha mãe que me, normalmente, levava à escola. Esses foram os momentos mais tristes da minha passagem, que ainda não conheceu término, no Colégio Moderno. Tristes, mas contentes. Não percebeu, leitor? Também me expliquei muito mal. Eram tristes ao entrar na casa amarela. Não sei, devia ser por causa do polícia. Não me apetece agora ir perguntar à minha mãe porque raio é que lá estava o agente da autoridade, em 1996 João Soares já era Presidente da Câmara? Sim, pronto, eram tristes ao entrar mas eram a minha felicidade quando me via lá dentro. Lembro-me de vários episódios nessa casa amarela. Vou-lhos contar, leitor. O quê? Não quer saber? Não tem nada a ver com historiazinhas de adolescentes que uma vez passaram por um jardim de infância? Tem razão leitor, não leia se não quiser. Ninguém o obriga. Mas, não sei porquê, ler não é só ler histórias de pessoas, género agentes secretos, que nós nunca seremos. Ler é também ler sobre pessoas como nós. Doutra forma não teria devorado recentemente quase todos os Adrian Mole, sobre um adolescente. Abençoada seja, Sue Townsend. Mas agora leitor que ainda me lê, vamos então aos episódios.

Nós costumávamos lanchar. Como todos os infantários, amarelos ou não, de decência. Normalmente era pão com manteiga e leite. Um dia os responsáveis do Colégio tiveram a infelicíssima ideia de juntar cavacas das Caldas da Rainha, com as quais eu estava bastante familiarizado – pelas minhas relações familiares com a terra – e pela pior maneira pois ainda hoje as odeio. O que aconteceu foi que eu, ainda que odiando o doce, as comi sofregamente, engasgando-me, ficando a dita cavaca presa na garganta. Não sei o que aconteceu a seguir. Só sei que continuo aqui, sem quaisquer marcas da passagem dessa cavaca. Alguém tratou de me desengasgar, certamente.

Da casa amarela, por acaso, não me estou a lembrar de nenhum outro episódio. Já agora, que raio de mania que eu arranjar em chamar o infantário de casa amarela. Mas a seguir veio outra casa. Uma casa maior. Não deixarei, no entanto, de relatar a minha vida na casa amarela sem mencionar a minha educadora. Penso que se chamava Céu. Não me recordo, mas de certeza que contribuiu para a minha educação. Nem que tenha sido ao recolher para a posterioridade os meus desenhos completamente abstractos.